São Paulo é um caldeirão histórico e cultural que se reflete na mesa. E parte fundamental dessa diversidade gastronômica são os imigrantes. A imigração começou aqui no século 19 e, desde então, não parou – hoje, segundo a prefeitura, são mais de 360 mil imigrantes legais na cidade.
O que torna São Paulo uma capital gastronômica internacional é justamente essa mistura de culturas, onde a multiculturalidade é a melhor palavra para descrever a cena da cidade.
Os preparos autênticos, as tradições que chegaram e se adaptaram ao Brasil e os representantes de várias cozinhas são os fios condutores do terceiro e último programa da temporada especial de São Paulo do CNN Viagem & Gastronomia.
Depois de percorrer museus, hotéis e restaurantes emblemáticos da cidade e focar nos grandes personagens que compõem nossa gastronomia, é chegada a hora de viajar por locais e culturas distantes da maneira mais rápida e apetitosa possível: por meio da comida.
Das pizzas italianas, passando pelas nuances da cozinha japonesa, pelos sabores do México e chegando nas iguarias árabes, até aterrissar no trabalho de empreendedorismo gastronômico com refugiados, confira a seguir algumas cozinhas, personagens e inspirações surgidas através da imigração em São Paulo:
Capital da pizza no Brasil
Não podemos falar de São Paulo sem mencionar suas pizzas. Associadas à Itália, as redondas também fazem parte da identidade paulistana, trazidas para cá no início do século 20 pelos imigrantes italianos do Sul do país da bota. Interessante é que em pouco tempo a iguaria se popularizou primeiro por aqui e somente depois na própria Itália.
Hoje, três pizzarias da cidade estão entre as 100 melhores do mundo no guia italiano 50 Top Pizza: a QT Pizza Bar; A Pizza da Mooca e a Leggera. A QT, inclusive, é liderada por Matheus Ramos, considerado um dos 100 melhores pizzaiolos do mundo neste ano pelo prêmio The Best Pizza.
Ele comanda a casa na região de Cerqueira César, onde faz uma boa mistura entre Itália e Brasil. “A gente segue muito as tradições italianas, sempre alinhados com as tradições napolitanas, como a procedência da farinha e do tomate. Mas buscamos pequenos produtores aqui no Brasil e acho que isso é o que faz sermos reconhecidos fora do país”, diz o pizzaiolo.
Os pequenos produtores também estão na mira d’A Pizza da Mooca. O proprietário Fellipe Zanuto aposta no bom ingrediente para manter a qualidade de seu produto. “Não tem como sair disso, é um clichê. Tenho o mesmo fornecedor de queijo há 12 anos e, mesmo ele sendo fornecedor da maioria das pizzarias, sabemos usar o ingrediente da nossa forma”, conta.
Nos últimos anos, houve uma crescente popularização das pizzas napolitanas na capital, feitas ao espelho das redondinhas servidas em Nápoles. E qual a diferença entre ela e a nossa pizza “abrasileirada”?
“A diferença principal é uma receita muito simples: a napolitana só leva água, sal, farinha e fermento. E aí ela tem uma fermentação mais lenta e mais longa. Já a pizza paulistana, a nossa pizza brasileira, é uma receita, digamos, mais sem paciência. A pessoa bate a massa às 16h e às 18h está pronta”, exemplifica Fellipe.
Nos Jardins, a Leggera também tira suas pizzas do forno a lenha, seguindo os moldes napolitanos. As pizzas individuais são abertas manualmente e assadas a 450º C, a partir de uma massa leve de fermentação natural. Uma das melhores maneiras de provar a iguaria é pedindo a Margherita Verace da casa: o tomate é amassado à mão para não perder a textura, a mussarela de búfala é fresca e, no final, um fio de azeite extravirgem é usado para cocção.
Talher aqui é apenas para cortar a pizza; as fatias são para comer com as mãos – a dica é virar a ponta da fatia até a borda, como um sanduíche. André Guidon é o pizzaiolo por trás dessa empreitada.
“Sempre brinco que a satisfação maior é o cliente entrando na casa, mas os prêmios ajudam para que essa situação aconteça. Quem visita São Paulo, a capital brasileira da pizza, procura por boas pizzarias e também as premiadas. Os visitantes estrangeiros buscam pelos guias internacionais e acabam nos encontrando também”, diz André.
Mas, para além das napolitanas, as pizzas paulistanas aos moldes brasileiros também têm seu lugar certo. Em Higienópolis, a Veridiana Pizzaria é uma das minhas favoritas. O pão com linguiça e as outras entradinhas já são uma refeição por si só, mas reserve espaço para a pizza de abobrinha com ricota, um item que conquistou meu coração. Pizza é assim: é memória e prazer, e cabe a você eleger a melhor.
Um pulinho na Ásia
As imigrações japonesa e coreana são fortíssimas em São Paulo, onde o caldeirão cultural dessas comunidades se reflete na mesa. Seja em bares premiados em Pinheiros ou em portinhas no Bom Retiro, uma coisa é certa: bons exemplos dessas expressões gastronômicas não faltam pela cidade.
A começar, Thiago Bañares me levou para um verdadeiro roteiro gastronômico em cada um dos seus negócios. O primeiro destino foi o Tan Tan, bar nacional mais bem colocado entre os 100 melhores do mundo. O local nasceu para ser uma casa de lámen, mas no meio do caminho, Thiago percebeu que o pequeno bar de três lugares que ele havia implementado estava gerando mais agitação do que os pratos principais.
“O Tan Tan é um bar e restaurante. A parte da comida foca na cozinha chukka, que é uma mistura da cozinha chinesa com a japonesa, e é um pouco da minha história. Durante muitos anos convivi com japoneses, mas a minha base, carga e referência de comida é a chinesa”, conta Thiago enquanto saboreamos delícias já clássicas da casa, como o katsu sando e o harumaki frio de tartar de atum.
O próximo destino não fica longe: paramos no Kotori, entre os 100 melhores restaurantes da América Latina. É como uma mistura de um izakaya moderno com yakitori, com foco na brasa e em espetinhos grelhados. O Kotori é também um dos bons exemplos de izakayas que surgiram em São Paulo nos últimos anos. A que se deve essa multiplicação? “A proximidade da comida do brasileiro, com a pegada da fritura e do grelhado. A similaridade acaba resgatando a comida de boteco”, aposta Thiago.
Por fim, acabamos a noite no The Liquor Store, um bar sedutor nos Jardins, localizado sobre o restaurante Goya, que possui um ambiente íntimo e acolhedor. “É um conceito pouco explorado no Brasil, que é ir para o bar só para beber. Há clientes que perguntam sobre comida, mas é outra proposta. É contemplar conversa, descoberta e tentar entender mais o que você está buscando”, explica o proprietário. Uma vez aqui, não deixe de pedir o Dry Martini, em que o gim é servido a aproximadamente -18ºC.
Na esteira da influência japonesa na cidade, um dos melhores e mais concorridos balcões da capital paulista é o Murakami, com um belo omakase preparado pelas mãos do craque Tsuyoshi Murakami para apenas 12 comensais por noite. Estar na casa na Alameda Lorena é se deparar com um trabalho autoral minucioso bem diante dos nossos olhos, utilizando o que há de mais fresco no dia.
Um exemplo é o shari, o arroz para o sushi, feito no próprio balcão, onde somos testemunhas da mistura do vinagre pelas mãos do chef – e também de um pouquinho de vinagre de jerez, que remete aos anos em que o Murakami passou na Espanha. É para nos sentarmos, curtirmos o momento e apreciarmos ótimos preparos em experiências que variam de seis a 18 etapas, as quais podem ser harmonizadas com saquês artesanais.
Além dos japoneses, um dos povos que também encontrou morada em São Paulo foram os coreanos. São mais de 50 mil deles no Brasil, com a esmagadora maioria na capital paulista, principalmente no Bom Retiro. Quem me guiou pelo bairro foi Paulo Shin, chef que liderava o Komah até o ano passado.
“O Bom Retiro tem seu charme. Não só pela facilidade de locomoção, com os comércios próximos uns dos outros, mas também pela presença das comunidades que se instalaram aqui”, diz o chef, que, junto comigo, experimentou docinhos na Fresh Cake Factory, doceria coreana que serve desde o bolo de chá verde até o korokke, salgado japonês frito.
Hoje conseguimos encontrar aqui as comunidades paraguaia, chinesa e boliviana, mas acredito que os coreanos conseguiram se instalar com mais restaurantes, bares, karaokês e entretenimento noturno
Paulo Shin
“É muito legal descobrir uma portinha nova, um lugar onde você entra em um universo diferente. Você sente um pouco da Coreia e esse é o charme do bairro”, arremata o chef. Uma das novidades para o ano que vem é que ele estará de volta à cena gastronômica da cidade com um novo restaurante. Fiquemos de olho!
O Oriente Médio e o México são logo ali
Outra forte imigração no Brasil provém da cultura árabe, em que receitas e iguarias do Oriente Médio acabam encontrando boa mesa em São Paulo. Para me ajudar na tarefa de encontrar autênticos exemplares da comida árabe na cidade, recrutei Fred Caffarena, chef e nome por trás do Make Hommus Not War, para uma imersão gastronômica.
O local escolhido? As redondezas do Mercadão de São Paulo. Aqui estamos acostumados com o sanduíche de mortadela e com o pastel de bacalhau, mas há um anexo que é menos turístico, o Mercado Kinjo Yamato.
“De um tempo para cá começou a virar um polo da cultura árabe e do Oriente Médio. O Rei do Saj, por exemplo, faz o manouche, o que a gente chama de esfiha”, diz Fred.
São Paulo é assim: uma surpresa bem diante dos nossos olhos em um local que já conhecíamos. Aqui podemos encontrar ainda uma casa libanesa, uma casa do norte, hortifruti e delícias como manteiga de garrafa e shawarma. Segundo o chef, uma unanimidade ao falarmos sobre comida árabe e do Oriente Médio é o conceito de mesa farta.
“Aqui no mercado gosto também do Delícias da Pérsia: é a melhor kafka que já comi fora do Oriente Médio”. É uma comida autêntica que nos transporta diretamente para lá.
Por falar nessa viagem gastronômica, também temos à disposição um pezinho do México em plena São Paulo com duas casas que capricham na arte de servir bem: a Taqueria Atzi e o Metzi. Ambas são empreitadas do casal Eduardo Ortiz e Luana Sabino, ele mexicano e ela brasileira.
“A ideia do Atzi é ser um local descontraído, com uma comida boa e rápida, assim como no México. Quisemos trazer essa tradição para cá e sermos os embaixadores da comida mexicana com algo simples, de rua e acessível”, diz Luana. Entre as opções, o irmão menor do Metzi serve o taco al pastor, que leva porco condimentado e uma recomendação de Luana: temperar com chipotle para dar um toque picante.
Já o Metzi, também em Pinheiros, eleva o conceito e esbarra no fine dining com um toque casual, trazendo técnicas contemporâneas e mexicanas e “sempre valorizando o ingrediente local, assim como o resgate de ingredientes brasileiros”, como lembra Eduardo. Tal trabalho rendeu frutos: é o 18º melhor restaurante entre os 50 da América Latina.
“Eu sempre falo que Brasil é diversidade. Aqui tem coisas que eu nunca imaginei que existiam, como as frutas da Mata Atlântica, frutas amazônicas e alguns insetos”, diz Eduardo, que preparou para mim uma tostada de siri com pistache e cenoura, assim como um mole branco que leva cachaça amburana no lugar do pulque e couve-flor marinada com pimenta seca, jambu e tucupi preto, uma bela mistura do Brasil com o México.
“No Brasil aprendi a ser mais feliz. No futuro, vejo o Metzi, e especialmente minha equipe, feliz, sempre crescendo e querendo ser melhor”, finaliza o chef.
Refugiados e o empreendedorismo gastronômico
A gastronomia no Brasil, e principalmente em São Paulo, foi desenhada pela imigração. E há outro lado que merece destaque: o dos refugiados. Na capital paulista, existem projetos voltados para protegê-los e capacitá-los, proporcionando uma oportunidade de conhecer uma cultura por meio do acolhimento.
Assim nasceu o Instituto Germinar, que atua no empreendedorismo com foco em gastronomia social e capacitação profissional, visando a inclusão social, cultural e econômica. “Com muita felicidade, conseguimos fazer o primeiro projeto no semestre passado com cinco refugiados participando da primeira turma na Anhembi Morumbi. Dos cinco, quatro já estão trabalhando com gastronomia”, comenta Maurício Chapinoti, presidente do instituto.
Outro projeto que se concentra no empreendedorismo e oferece condições dignas é o Instituto Capim Santo, uma ONG criada pela chef Morena Leite há quase 15 anos, que trabalha a gastronomia como ferramenta de inclusão social.
Foi em uma das cozinhas dos projetos que conheci Mary Mina, que veio da Colômbia e já está trilhando o caminho empreendedor com o sonho de ter um negócio próprio. No dia de minha visita, ela preparou a arepa, que, nas palavras dela, é a “rainha da gastronomia colombiana”.
“Trazer refugiados como a Mary para uma cozinha profissional, ajudá-la a desenvolver sua técnica, a procurar novos trabalhos e a gerar renda faz com que nosso objetivo seja alcançado, que é utilizar o poder da gastronomia para ajudar no desenvolvimento de seres humanos”, define Luccio Oliveira, presidente do Instituto Capim Santo.
Vale lembrar que o instituto ainda mantém o projeto “Pare com a Fome”, uma iniciativa que nasceu durante a pandemia e que hoje distribui mais de 800 quentinhas em dias úteis para ONGs de Capão Redondo, Jardim D’Lago, Embu das Artes e Taboão da Serra. Aqui, a gastronomia vai além da comida e entra em cena como uma poderosa ferramenta de transformação social.
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