Parece que 2024 foi o ano no qual o turismo tomou um rumo negativo e as comunidades locais começaram a reagir. Afinal, houve protestos nas ruas, grafites pedindo para viajantes voltarem para casa e a diminuição da população local enquanto aluguéis de curto prazo aumentavam, afastando moradores.
A cidade de Veneza, na Itália, passou a cobrar uma taxa de entrada para visitantes de um dia, enquanto um município movimentado na Suíça anunciou o desejo de seguir pelo mesmo caminho. Moradores também protestaram contra o turismo de massa em Mallorca e Barcelona, na Espanha.
Embora o problema se intensificou na Europa, o “overtourism” é um fenômeno global. Em maio, uma cidade japonesa com vista para o Monte Fuji ergueu muros que bloqueavam a paisagem — e os removeu em agosto.
Bali, na Indonésia, instituiu um imposto de entrada para estrangeiros em fevereiro. Os parques nacionais dos Estados Unidos estão abarrotados – com 13 milhões de visitas a mais em 2023 em comparação a 2022, segundo dados do Serviço de Parques Nacionais. Na alta temporada, é necessário reservar uma vaga com antecedência para entrar.
No entanto, o aumento do interesse não parece corresponder ao respeito pelo local. Durante a paralisação do governo, em 2019, visitantes causaram danos no Parque Nacional de Joshua que levariam séculos para serem corrigidos, segundo as autoridades na época.
O risco, como escreveu a professora e especialista em meio ambiente Emily Wakild para a CNN Travel, em 2023, é “amar um lugar até destruí-lo”.
“Isso não é recente ou alguma novidade”, diz Noel Josephides, presidente da operadora de turismo europeia Sunvil.
Josephides acredita que o caos atual era previsível há anos. Ele se sente “envergonhado” pelo que a indústria fez com os destinos.
“Perdi a fé no que nosso negócio representa”, diz sobre o estrago que o turismo causou na Europa.
Outros veteranos concordam. A única questão é se conseguiremos sair dessa e redefinir o turismo para que volte a ser a bela experiência que todos conhecemos e valorizamos.
“A indústria se esqueceu da boa vontade local”
Justin Francis passou a vida sentindo os efeitos desconfortáveis do turismo de massa. Ele cresceu em uma das cidades mais visitadas do Reino Unido, Bath – que lembra como sendo popular entre os norte-americanos quando era criança, na década de 1970.
“Eu me lembro de ficar impressionado com essas pessoas alienígenas e como eram barulhentas – gritavam umas com as outras”, ele diz. “Eles ficavam parados e bloqueavam o caminho. Eu me sentia invisível”.
Essas primeiras experiências levaram Francis a fundar a Responsible Travel, uma operadora de turismo que trabalha com pequenas propriedades locais e guias, em 2000.
Sua ideia de turismo como uma experiência de conexão entre culturas parece ter sido deixada de lado nos últimos anos. “O turismo deu certo em muitos lugares, mas, de maneira geral, [a indústria] perdeu a confiança das pessoas locais”, comenta.
“Tem sido muito ruim este ano”, completa sobre os protestos e os incidentes de turismo excessivo. “Isso é uma ameaça há muito tempo – não foi preciso muita imaginação ou previsão [para saber no que daria]”.
“A indústria do turismo esqueceu seu ativo mais precioso: a boa vontade dos locais. Sem isso, o mercado desmorona. O ativo se perdeu e será difícil recuperá-lo”.
Francis atribui isso a uma combinação de fatores: o crescimento das companhias aéreas de baixo custo, aluguéis de temporada, redes sociais (que aumentam o interesse em destinos em alta) e economias em expansão – o que significa que mais pessoas conseguem viajar.
Agora, ele diz, estamos diante da “difícil realidade de que o turismo é uma indústria agressiva como a maioria das outras, e precisa ser regulamentada e controlada”.
Uma “corrida para o fundo do poço”
O empresário Noel Josephides, que envia clientes do norte da Europa para o Mediterrâneo desde 1970, concorda. Grande parte de seu trabalho envolve descobrir novos locais que o público adoraria – sua empresa foi uma das primeiras a enviar turistas para a ilha grega de Skiathos, nos anos 1980, diz ele – assim como para outra ilha grega, Lemnos, e o arquipélago português dos Açores.
A “criação” de um destino é relativamente simples, diz ele. Operadoras de turismo o exploram, os locais investem em infraestrutura turística – muitas vezes com apoio financeiro – e pequenas agências o adicionam aos seus catálogos.
Se o destino vende bem, as operadoras maiores entram em cena. Segundo ele, se uma delas decide colocar um voo para esse destino, as outras rapidamente fazem o mesmo. “De repente, você passa de um voo por dia para quatro ou cinco”, ele diz.
De repente, o turismo naquele destino muda. As operadoras de turismo precisam preencher seus aviões e, com mais voos acontecendo, precisam expandir o mercado. O que pode ter começado como um destino de alto nível para aqueles que o conhecem, de repente se torna um local de mercado de massa.
“Isso acontece ao longo de alguns anos e você quase não percebe – mas, de repente, você tem a indústria do turismo local reclamando que ninguém come nos restaurantes, ou que comem apenas um prato, não dois, ou que não fazem excursões, porque as ‘novas’ pessoas podem pagar o preço do pacote [mas nada mais]. Então, com isso, você tem uma reação local”, ele diz.
Josephides é um nome respeitável no turismo europeu – ele também é ex-presidente da ABTA (Associação de Agentes de Viagens Britânicos), da AITO (Associação de Operadores de Turismo Independentes) e da Travel Foundation, a instituição de caridade de sustentabilidade da indústria.
Ele admite sua responsabilidade no processo. “Você poderia dizer que fomos responsáveis por iniciar o processo [de turismo de massa em Skiathos], mas só até certo ponto. Atraímos um certo mercado. O mercado que eu chamaria de destrutivo – o de volume – não chega até nós”, diz ele.
Ainda assim, ele acredita que a indústria está “fora de controle” e em uma “corrida para o fundo do poço” – algo que muda a percepção dos locais sobre os visitantes que chegam em grandes quantidades.
“Não acho que as pessoas sejam contra o turismo, mas estão começando a entender, finalmente, que ele precisa ser controlado”, diz ele. “Se não for, o que as pessoas vêm ver será tão degradado que terminará em lágrimas”.
Ele cita as ilhas gregas de Mykonos e Santorini, que agora estão notoriamente saturadas. No início deste mês, um operador turístico de Santorini disse à CNN Travel que a ilha está “vazia” e que este verão foi sua “pior temporada de todos os tempos” – porque as pessoas estão desmotivadas pelas imagens das multidões, muitas delas excursionistas vindos de cruzeiros.
“Quando você sobrecarrega o destino, começa uma espiral descendente”, diz Josephides. “É muito difícil voltar ao que era antes”.
“Não se pode esperar que saibamos o que acontecerá em 10 anos – não sabemos que tudo pode sair do controle. A culpa é muito da indústria do turismo, que sabe o que vai acontecer.”
“Fora de equilíbrio”
Nem todos os envolvidos são tão pessimistas. Pedro Fiol, presidente da AVIBA – a Associação de Agentes de Viagens das Ilhas Baleares, o arquipélago na costa leste da Espanha, que tem sido o epicentro dos protestos neste verão – afirma que “a grande maioria da sociedade” não está protestando contra os turistas.
O aeroporto de Mallorca, uma das ilhas mais importantes do arquipélago das Ilhas Baleares, recebe até 1.000 voos por dia (chegando ou partindo) durante a temporada de verão, de acordo com um porta-voz.
Ainda assim, Fiol acredita que muitos dos problemas de infraestrutura, falta de transporte público e moradia se devem tanto a decisões políticas ruins quanto ao turismo.
Uma das mudanças no turismo nas Baleares é que as pessoas não ficam mais só na praia – usam o transporte público para visitar cidades no interior.
“Por um lado, isso é positivo porque gera renda para o comércio local, mas, por outro, pode colapsar a infraestrutura básica, já que essas pequenas cidades não estão prontas para receber tantos turistas”, comenta.
Com o aumento dos preços, alguns turistas tentam economizar reduzindo a qualidade dos serviços que contratam, ou escolhem ficar no local por menos tempo, completa. Ele afirma que reduzir o número de viajantes que gastam menos, sem antes atrair aqueles que investem em experiências de maior qualidade, resultaria em “um impacto econômico muito negativo para nossas ilhas”.
“Os moradores exigem mudanças, mas essas mudanças não virão sem uma economia sólida vinda do setor turístico, que possa impulsionar uma melhoria e modernização de nossos sistemas sociais e infraestruturas”, afirma ele.
A preocupação de Fiol com as áreas rurais das ilhas, que lutam para lidar com a demanda crescente, é um ponto crucial para Jeremy Sampson, CEO da Travel Foundation. “Não acho que o turismo de massa seja a causa raiz, mas um sintoma – estamos fora de equilíbrio”, diz ele.
“Você pode receber muitas pessoas, desde que planeje bem como elas vão circular. Mas basta uma pessoa chegar na hora errada e no lugar errado para esgotar os recursos disponíveis”.
Jaume Bauza, ministro do Turismo, Cultura e Esportes das Baleares, disse à CNN Travel que o governo criou um comitê para “desenvolver um plano social e político para o turismo sustentável”.
“As preocupações dos moradores são uma prioridade para nós. Não podemos esquecer que o turismo é a principal fonte econômica para a nossa comunidade, mas devemos colocar os locais em primeiro lugar – e não esquecer suas demandas e preocupações”, afirma.
“Chega de excessos”
A acomodação é um fator importante em como os moradores enxergam o turismo, dizem os especialistas.
“Quando você pergunta aos locais sobre suas maiores frustrações, geralmente dizem: ‘Eu não posso mais viver aqui’”, comenta Francis. “Os aluguéis de temporada ocuparam os lugares que as pessoas poderiam alugar ou comprar.”
Em Veneza, outro ponto crítico são as mais de 8.000 propriedades listadas no Airbnb, de acordo com dados do Inside Airbnb, em comparação com menos de 50 mil moradores.
Sampson afirma que o crescimento dos aluguéis de curto prazo só perde para os voos baratos como causa dos problemas do turismo atual. “O ritmo de crescimento do setor privado geralmente supera os ciclos de planejamento – o ritmo precisa ser alinhado com a realidade”, diz.
Josephides afirma que os aluguéis de curto prazo sustentam a expansão das rotas aéreas. “Os grandes operadores não podem [expandir] sem que os clientes recorram ao Airbnb – um não pode existir sem o outro”, pontua. “Se não fosse por esse aumento da capacidade, o mercado do Airbnb não existiria”.
Falando sobre Mallorca e as Ilhas Baleares, Fiol chama os aluguéis de curto prazo de “um problema muito sério” que “causou um aumento imprevisível no número de visitantes… estamos tendo fluxos turísticos desproporcionais em algumas partes de nosso território”.
“As vendas diretas junto com os aluguéis de temporada foram a causa desse aumento descontrolado de turistas, que nenhuma de nossas instituições soube prever”, diz.
Bauza pediu que o Airbnb e outras plataformas de aluguel de curto prazo “nos ajudem na luta contra aluguéis ilegais, listando apenas propriedades turísticas legítimas em suas plataformas”.
Em fevereiro, a União Europeia votou por mais transparência em relação aos aluguéis de curto prazo, um pedido no qual o Airbnb afirmou “acolher”.
A plataforma online VRBO, que conecta proprietários de imóveis com inquilinos por temporada, não respondeu ao pedido de comentário sobre o assunto, mas um porta-voz do Airbnb culpou o “turismo de massa impulsionado pelos hotéis” por sobrecarregar destinos históricos populares.
“Em contraste, o Airbnb representa uma pequena proporção dos visitantes da Europa, espalha os hóspedes e os benefícios para mais comunidades e ajuda as famílias locais a manterem suas casas”, disse o porta-voz.
“O Airbnb trabalha com governos do mundo todo para diversificar o turismo e fortalecer as comunidades, e estamos ansiosos para avançar nesse trabalho”.
Josephides também critica os resorts all-inclusive. Os viajantes gostam deles porque sabem seus custos antecipadamente e, para as operadoras de turismo, é muito conveniente. “Você controla como [as pessoas] chegam lá, quanto gastam – é uma bolha, quase como um cruzeiro”, diz. Mas o efeito nas comunidades pode ser devastador. “Eles criam cidades fantasmas”, completa.
“As operadoras de turismo dizem que estão proporcionando empregos para os locais e comprando alimentos da região. O que não dizem é que essas pessoas costumavam ter seus próprios [restaurantes] antes”.
“Quanto mais você olha, mais assustador fica. No momento, estamos vendo uma culminação – todos esses problemas estão voltando para nos assombrar”, diz ele. “Chega de excessos”.
Nem a Jet2 Holidays, a maior operadora de turismo do Reino Unido, nem a Tui, uma das maiores do mundo, responderam ao pedido de comentário da CNN Travel.
“Uma visão do inferno”
Mas será que sempre foi assim? Lucy Lethbridge, jornalista e autora do livro “Tourists”, que traça a história do turismo de uma perspectiva britânica, diz que sempre houve um certo esnobismo sobre quem deveria viajar.
No início do século XIX, ela diz, empresas como a Thomas Cook – uma operadora de turismo que faliu em 2019 após 178 anos de atividade – “abriram a ideia de viajar por prazer, que antes era um privilégio exclusivo da aristocracia, para as classes médias”.
Havia reclamações sobre as multidões desde o início desse turismo de massa, “mas elas geralmente vinham de outros viajantes”, comenta Lucy. “No geral, as pessoas que viviam em lugares que se tornaram destinos turísticos acolhiam as multidões, porque isso mudava completamente suas vidas de árduo trabalho agrícola”.
A dúvida entre ser turista ou viajante, e a ideia de ser o “tipo certo” ou “errado” de turista, sempre esteve presente. “As pessoas eram muito esnobes em relação aos turistas em grupo – [diziam que] eram de classe inferior e não sabiam de nada”, diz ela.
“Isso persiste até hoje. Todo mundo tende a pensar – independentemente do grupo em que está – que não são os turistas, mas viajantes”.
Ela diz que o turismo “é uma força interessante, afinal, destrói o que procura.”
Há três anos, ela foi a Santorini. “É tão lotado e todo mundo está tirando a mesma foto do mesmo pôr do sol sobre os mesmos telhados”, comenta. “Foi como uma visão do inferno.”
Podemos salvar o turismo?
Então, qual é a solução?
Josephides acha que qualquer mudança deve vir em nível governamental. “Tem que haver uma colaboração entre os países emissores e receptores – o poder não deve estar nas mãos da [indústria]”, diz. “As companhias aéreas continuarão a se expandir porque é isso que seus acionistas esperam. Nunca se poderá fazer uma grande operadora de turismo concordar com uma moratória no número de turistas”.
“Em 10 anos, haverá destinos que acertaram e aqueles que não tem mais solução [para o turismo de massa]”.
Sampson diz que as organizações de marketing de destinos (DMOs) devem mudar de incentivar o turismo para “equilibrá-lo”.
“À medida que se fortalecem em sua capacidade de obter o financiamento adequado, governança e as ferramentas para fazer algo a respeito, isso pode e vai mudar”, ele afirma.
Ele acredita que uma mudança de apagar incêndios no dia a dia para o planejamento de longo prazo fará a diferença.
Fiol sugere que aqueles preocupados com o agravamento dos problemas nas Baleares poderiam visitar fora de temporada. Embora ainda seja ensolarado na primavera e no outono, ele afirma que o inverno é o momento ideal para o “turismo imersivo”, focado em gastronomia, cultura, bem-estar e “um número interminável de atividades que certamente irão surpreendê-los”.
Francis também diz que todos podemos fazer a nossa parte. Hospede-se em um hotel, em vez de uma locação de temporada, recomenda Francis, para evitar retirar dos locais a chance de ter moradia. Escolha uma estadia de propriedade local, para que seu dinheiro permaneça na comunidade.
Se você realmente quiser alugar, opte por um quarto em uma casa, em vez de toda a propriedade – “a ideia original do Airbnb”, ele diz – e veja se a pessoa que anuncia o imóvel possui apenas um ou vários imóveis.
E, uma vez em uma cidade, contrate guias locais – eles não só podem ajudar a evitar as áreas superlotadas, mas também garantir que seu dinheiro circule pela comunidade.
“O turismo é uma troca”, diz Francis. “Os moradores deixam você entrar, em troca de você proporcionar algum benefício. Então, você realmente deve colocar o máximo de dinheiro possível nas mãos dos habitantes locais. Você está ali como um convidado e o retorno é financeiro – mas não acho que isso deva ser um fardo. Você terá uma experiência diferente”.
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